Dra. Letícia Arenal – Advogada da Salamone Advogados e Associados.
RESUMO: O controle concentrado de constitucionalidade das leis é exercido pelo Supremo Tribunal Federal, cujas decisões são dotadas de eficácia erga omnes, efeito vinculante e abarcadas pelo fenômeno da coisa julgada. Algumas dessas qualidades estão previstas na própria Constituição Federal do País, não deixando, porém, de nos incitar uma pergunta: considerando que a inconstitucionalidade não se convalida, a impossibilidade de modificação das decisões proferidas nas ações diretas de constitucionalidade não estaria por ferir a própria CF? A doutrina se divide ao interpretar essas características e, fazendo um estudo com o novo código de processo civil e a cultura de “precedentes” que se instaura no Brasil, trouxemos as teorias mais discutidas pela doutrina e jurisprudência, a fim de que possamos traçar as premissas necessárias para a correta aplicação da nova legislação.
PALAVRAS-CHAVE: Controle concentrado de constitucionalidade. Controle difuso. Controle concentrado. Eficácia erga omnes. Efeito vinculante. Coisa julgada. Novo Código de Processo Civil.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Características das decisões proferidas nas ações diretas do controle concentrado de constitucionalidade: 2.1. Teoria da transcendência dos motivos determinantes e o novo código de processo civil; 2.2. Teoria do “Moreira Alves”; 2.3. Posição contrária: da não aplicação do efeito vinculante e formação da coisa julgada material – 3. Conclusão – 4. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
O controle de constitucionalidade das leis e atos normativos do Poder Público defende a supremacia da Constituição Federal – base da sustentação do próprio Estado Democrático de Direito -, sendo um aspecto relevante da jurisdição constitucional.
No magistério de Georges Abboud[1] há citação a Peter Häberle, e nas palavras deste doutrinador argentino, “a função da jurisdição constitucional consiste na limitação, racionalização e controle do poder estatal e social, na proteção das minorias e os débeis e na reparação dos novos perigos para a dignidade humana”.
Tendo em vista os meios de controle de constitucionalidade previstos expressamente na Constituição Federal Brasileira (LGL\1988\3) – difuso-incidental e o concentrado-principal -, podemos afirmar que a função da jurisdição constitucional também engloba o controle dos erros eventualmente cometidos pelo Poder Legislativo.
Conforme leciona José Afonso da Silva, o controle difuso se verifica “quando se reconhece o seu exercício a todos os componentes do Poder Judiciário, e o segundo, se só for deferido ao tribunal de cúpula do Poder Judiciário ou a uma corte especial”.[2] Esse método de controle de constitucionalidade foi instaurado na legislação constitucional brasileira sob forte influência do sistema “americano” da judicial review of legislation, que surgiu a partir do célere caso Marbury v. Madison, julgado em 1803, por obra do Chief Justice John Marshall, tendo como base o princípio da obrigatoriedade dos precedentes, impulsionando as decisões a provocarem um efeito muito mais amplo, abrangendo a todos que se encontravam em situações análogas àquela objeto do cerne do julgado.
O controle concentrado de constitucionalidade, por outro lado, tem como antecedente histórico o sistema “austríaco”, inaugurado diante da inexistência do princípio do stare decisis (obrigatoriedade dos precedentes) nos países que adotavam o sistema da civil law, ocasionando a necessidade de criação de um controle diferente do então existente judicial review, para que as decisões proferidas gerassem efeito erga omnes. Nesse contexto, Hans Kelsen, a pedido do governo austríaco, apresentou a ideia de um sistema de jurisdição concentrada, com a criação de um órgão especial, conhecido como Tribunal Constitucional, que foi implementada com a Constituição daquele País, promulgada em 1° de outubro de 1920.
Traçados, sucintamente, os paralelos entre os dois métodos de controle de constitucionalidade hoje vigentes em nosso ordenamento jurídico, considerando que o foco desse trabalho está voltado às decisões proferidas no bojo do controle concentrado, cumpre-nos esclarecer que a competência para seu exercício é exclusiva do Supremo Tribunal Federal, podendo ser provocado, pela via principal, por meio das seguintes ações diretas: (a) a ação direta de inconstitucionalidade por ação (ADIN por ação); (b) a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADIN por omissão); (c) a ação direita de inconstitucionalidade interventiva (ADIN interventiva); (d) a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e (e) a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).
A ação declaratória de constitucionalidade foi criada em 1993, com a Emenda Constitucional n°. 3, instrumento não originalmente previsto na vigente Constituição Federal (LGL\1988\3). Com a referida emenda foi inserido o § 2° no artigo 102 da Carta Magna[3], sendo o primeiro diploma legislativo que previu a eficácia erga omnes e o efeito vinculante para as decisões proferidas em sede de ADC.
Passados alguns anos, em 1999, foi editada a Lei 9.868, que veio regulamentar a ADI, ADC e a ADO, prevendo as características acima elencadas também às decisões proferidas no julgamento dessas ações. A previsão constitucional, contudo, só ocorreu em 2004, com a Emenda n°. 45, oportunidade em que a eficácia erga omnes e o efeito vinculante constou expressamente da Constituição Federal (LGL\1988\3) também para as decisões proferidas na ação direta de inconstitucionalidade.
Através do presente estudo demonstraremos que há quem defenda, porém, a impossibilidade de se agregar efeito vinculante aos pronunciamentos que possuem eficácia erga omnes, sob o risco de petrificar a Constituição, além de ferir o princípio da independência decisória dos juízes, razões pelas quais também afirmam o impedimento da formação da coisa julgada material.
2. CARACTERÍSTICAS DAS DECISÕES PROFERIDAS NAS AÇÕES DIRETAS DO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE.
A coisa julgada material emerge das decisões proferidas nas ações do controle concentrado de constitucionalidade, impedindo a reforma da decisão pelo próprio Supremo Tribunal Federal em dado momento posterior à sua prolação, mesmo diante de alterações no âmbito social, econômico, político ou jurídico.
Alguns autores sustentam que não há qualquer justificativa para que a coisa julgada seja afastada quando do julgamento das ações constitucionais, fundamentando seu posicionamento na inexistência de ressalva em sentido contrário no ordenamento jurídico, na estabilização que a legislação constitucional e infraconstitucional busca atribuir à decisão proferida no controle concentrado e por ser regra no sistema judicial a formação da coisa julgada.[4]
Outra posição defendida, inclusive pela doutrina estrangeira e a qual nos filiamos, é a de que a formação da coisa julgada material nas decisões das ações direta e declaratória de constitucionalidade prejudica não só a própria evolução do direito pátrio, como a sociedade que supostamente é beneficiada com a segurança jurídica trazida pelo instituto. Trataremos melhor do assunto em tópico adiante.
Assim como o instituto da coisa julgada, as características eficácia erga omnes e efeito vinculante foram desenvolvidas com o fulcro de dar maior efetividade às decisões proferidas no controle concentrado de constitucionalidade, obtendo a estabilidade da discussão a respeito da constitucionalidade, alcançando a almejada segurança jurídica.
Como é cediço, referidas características hoje se encontram positivadas tanto na Constituição Federal como na legislação infraconstitucional e são previstas para a decisão proferida quando do julgamento da ADI, ADC, ADO e ADPF.
Acerca da eficácia erga omnes, não havendo grandes discussões sobre o assunto, podemos dizer que se restringe a apontar que todos devem ser abrangidos pela decisão prolatada.
Ponto interessante a ser levantado sobre a matéria se direciona à diferença entre eficácia erga omnes e coisa julgada, já que, conforme destacado por Rennan Thamay, “aquela é a potencialidade de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, no controle abstrato, de atingir a todos e fazer com que estes recebam os efeitos daquela decisão. Isso não tem qualquer vinculação com coisa julgada. Alguns autores chegam ao ponto de, por confundir os institutos, chamar a res iudicata de coisa julgada erga omnes, um equívoco”. O autor complementa lembrando que, “coisa julgada é a imutabilidade e indiscutibilidade que se liga não a todos, como a eficácia erga omnes, mas sim às partes envolvidas no litígio, com base na teoria da tríplice identidade”.[5]
Já em relação ao efeito vinculante existe considerável divergência na doutrina acerca de sua definição, sendo trazidas para conhecimento as três posições mais relevantes.
A primeira a ser exposta pertence a Gilmar Mendes[6], que afirma se tratar de um instituto desenvolvido no direito alemão e assegura força vinculante também aos motivos determinantes da decisão, além de seu dispositivo.
Diversos autores acompanham a posição do ilustre Ministro, como Luís Roberto Barroso[7], Pedro Lenza[8], Alexandre de Moraes[9], dentre outros.
Nessa linha de raciocínio, o efeito vinculante se refere à parte da decisão que deve ser observada, e seguindo a posição acima elucidada, conclui-se que ele abrange tanto a sua fundamentação quanto seu dispositivo.
Outra forte corrente sustenta a distinção entre eficácia erga omnes e efeito vinculante considerando o cabimento da reclamação no caso de inobservância de uma decisão que possua ambas as características, apontando, ainda, que apenas o dispositivo é dotado de efeito vinculante. É a posição inaugurada por MOREIRA ALVES, que inclusive foi o relator da primeira ADC julgada pelo Supremo Tribunal Federal.
O doutrinador Luiz Guilherme Marinoni, por sua vez, faz uma comparação entre as características da decisão do controle concentrado e a vinculação dos precedentes do common law, apontando que o efeito vinculante tem por objeto a ratio decidendi, se destinando a dar força obrigatória aos fundamentos determinantes da decisão. É o que se extraí da leitura do trecho de seu livro que colacionamos:
O verdadeiro motivo para se pensar em eficácia vinculante está na preocupação com a estabilidade dos fundamentos determinantes da decisão. Assim, é equivocado imaginar que os efeitos vinculantes acobertam apenas a parte dispositiva da decisão. O objetivo da eficácia vinculante não é tornar indiscutível ou imutável o dispositivo da decisão, nem tornar indiscutíveis ou imutáveis os fundamentos da decisão em relação às partes, sejam formais ou materiais.
A eficácia vinculante almeja isolar os fundamentos determinantes da decisão, impedindo que os órgãos públicos que aplicam o direito possam negá-los. Assim, além de não se limitar ao dispositivo, a eficácia vinculante não se volta a dar segurança às partes, e, portanto, está muito distante da coisa julgada.[10]
Podemos perceber a grande divergência doutrinária quanto ao conceito de efeito vinculante, sendo que as correntes predominantes se baseiam na posição de Gilmar Mendes e de Moreira Alves, razão pela qual o presente trabalho faz breve alusão ao estudo de cada uma delas, também com o fulcro de traçar a linha de raciocínio que ampara a posição defendida por este autor. É o que se depreenderá da leitura seguinte.
2.1. TEORIA DA TRANSCENDÊNCIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
A teoria defendida por Gilmar Mendes foi denominada pelo Supremo Tribunal Federal como “teoria da transcendência dos motivos determinantes”, estabelecendo, como dissemos, que o efeito vinculante atinge também a fundamentação da decisão.
A posição mais recente do Supremo Tribunal Federal entende pela não adoção dessa teoria. É o que se verifica da decisão cuja ementa transcrevemos para análise.
EMENTA: RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL. ALEGADO DESRESPEITO AO ACÓRDÃO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.868. INEXISTÊNCIA. LEI 4.233/02, DO MUNICÍPIO DE INDAIATUBA/SP, QUE FIXOU, COMO DE PEQUENO VALOR, AS CONDENAÇÕES À FAZENDA PÚBLICA MUNICIPAL ATÉ R$ 3.000,00 (TRÊS MIL REAIS). FALTA DE IDENTIDADE ENTRE A DECISÃO RECLAMADA E O ACÓRDÃO PARADIGMÁTICO. 1. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 2.868, examinou a validade constitucional da Lei piauiense 5.250/02. Diploma legislativo que fixa, no âmbito da Fazenda estadual, o quantum da obrigação de pequeno valor. Por se tratar, no caso, de lei do Município de Indaiatuba/SP, o acolhimento do pedido da reclamação demandaria a atribuição de efeitos irradiantes aos motivos determinantes da decisão tomada no controle abstrato de normas. Tese rejeitada pela maioria do Tribunal. 2. Inexistência de identidade entre a decisão reclamada e o acórdão paradigmático. Enquanto aquela reconheceu a inconstitucionalidade da Lei municipal 4.233/02 “por ausência de vinculação da quantia considerada como de pequeno valor a um determinado número de salários mínimos, como fizera a norma constitucional provisória (art. 87 do ADCT)”, este se limitou “a proclamar a possibilidade de que o valor estabelecido na norma estadual fosse inferior ao parâmetro constitucional”. 3. Reclamação julgada improcedente.”(Rcl 3014, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 10.03.2010, DJe-091 DIVULG 20.05.2010 PUBLIC 21.05.2010 EMENT VOL-02402-02, p. 0372). (Grifamos).
Esse ponto, porém, merece maior reflexão.
Sabemos que o novo Código de Processo Civil – muito mais discreto em comparação à redação do projeto da Câmara dos Deputados – contempla os precedentes para uniformizar a jurisprudência dos tribunais, merecendo o tema intenso estudo em trabalho futuro. Deveras, dentre as inúmeras inovações a esse respeito sobressai a tendência em aproximar o sistema judicial brasileiro, fundado, sobretudo no civil law, daqueles sistemas baseados em common law, que emprestam maior e inegável importância aos precedentes. Tal aproximação pode ser observada, inclusive, por intermédio do transporte de institutos jurídicos típicos do common law para o nosso Direito, como as técnicas de superação de precedentes, por exemplo, sobretudo aquelas relativas ao distinguishing, overrulling e overriding.
A fim de que possamos aplicar o princípio da obrigatoriedade dos precedentes – stare decisis – em nosso sistema judicial, necessário extrairmos dos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça a ratio decidendi, ou seja, os fundamentos determinantes da decisão. Isso porque, somente os fundamentos imprescindíveis para o alcance do resultado previsto no dispositivo da decisão é que produzirão o efeito almejado da uniformização da jurisprudência, devendo os juízes e tribunais seguir os precedentes formados.
Na linha de entendimento da nova cultura jurídica que se instaura, a teoria da transcendência dos motivos determinantes poderá ser extraída da interpretação do próprio texto legal, já que os motivos determinantes das decisões do STF e do STJ necessariamente deverão vincular os juízes e tribunais para que imperem os princípios da legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia.[11]
Conforme se observa da leitura do trecho extraído do artigo de MARINONI, que já foi objeto de estudo, o autor destaca a importância dos precedentes ao afirmar que “o verdadeiro motivo para se pensar em eficácia vinculante está na preocupação com a estabilidade dos fundamentos determinantes da decisão”.[12]
Podemos observar que o nosso sistema judicial clama por uma mudança capaz de implantar a efetiva uniformização da jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente.
2.3. TEORIA DO “MOREIRA ALVES”.
Consoante elucidamos, a corrente originária do grande jurista Moreira Alves defende que, caso não observada uma decisão protegida pela eficácia erga omnes e pelo efeito vinculante, cabível o uso da reclamação, remédio processual que visa preservar a competência do STF e garantir a autoridade de suas decisões.
Há quem afirme que a eficácia erga omnes é suficiente para vincular os magistrados inferiores e, nesse sentido, é satisfatória a previsão do cabimento da reclamação na legislação pátria para o caso de inobservância de decisão com tal eficácia e, assim, não haveria necessidade da criação do efeito vinculante no sistema constitucional.[13]
O próprio Ministro Gilmar Mendes[14]coaduna com esse entendimento, afirmando que não haveria qualquer razão apta a sustentar a permanência do efeito vinculante no ordenamento jurídico caso a sua teoria não seja adotada.
O Ministro Moreira Alves defende que a eficácia erga omnes pode ser entendida como a ampliação dos limites subjetivos da coisa julgada no controle concentrado de constitucionalidade, estendendo-se ao Poder Executivo e Judiciário. Em relação ao efeito vinculante, em contrário senso, afirma não estar relacionado com a coisa julgada, sendo um fenômeno ligado à exequibilidade da decisão, possibilitando, por essa razão, o uso da reclamação quando de seu descumprimento.
Em suma, para essa teoria a existência do efeito vinculante sobre a decisão apenas possibilita o uso da reclamação em caso de recalcitrância dos destinatários, a fim de impor o seu cumprimento.
Assim, para Moreira Alves e outros autores que corroboram seu entendimento, o efeito vinculante não tem correlação com a coisa julgada e os limites objetivos desta são restritos ao dispositivo do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal.
2.4. POSIÇÃO CONTRÁRIA – DA NÃO APLICAÇÃO DO EFEITO VINCULANTE E FORMAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL.
No inicio desse trabalho levantamos a discussão existente na doutrina acerca da impossibilidade de aplicação do efeito vinculante, bem como do instituto da coisa julgada, a alguns pronunciamentos que possuem eficácia erga omnes, sob o risco de petrificar a Constituição Federal do País, além de ferir o princípio da independência decisória dos juízes.
Considerando o quanto exposto no decorrer do presente estudo, se vislumbra que a posição aqui veiculada se baseia em construção doutrinária, na medida em que tanto a legislação constitucional quanto a infraconstitucional prevê expressamente que as decisões proferidas nas ações diretas do controle concentrado de constitucionalidade são dotadas de eficácia erga omnes e efeito vinculante.
Contudo, ao nosso sentir está equivocada a previsão legal, principalmente ao conferir tais características às decisões que declaram a constitucionalidade de uma lei ou ato normativo quando do julgamento em abstrato.
O jurista Georges Abboud[15] disserta muito bem sobre o assunto e para apoiar tal inteligência faz menção a um artigo que LIEBMAN dedicou à análise da eficácia das decisões de inconstitucionalidade, abordando se seria possível uma Corte Constitucional proferir uma decisão declarando a constitucionalidade de uma lei e quais seriam os efeitos provenientes dessa decisão.
No referido artigo, publicado em 1962, LIEBMAN diferencia os efeitos da sentença, dividindo-os em principais e secundários, sendo o principal “aquele oriundo da decisão judicial que aprecia o pedido (pretensão material) da parte. Os resultados secundários, por sua vez, são aqueles provenientes da legislação vigente e que, por consequência, incidem na decisão judicial”.[16]
Georges Abboud conclui que, ao se aplicar a distinção de Liebman à análise da constitucionalidade da lei ou ato normativo, se pode afirmar que o Tribunal Constitucional decidirá pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade, ocasionando como resultado principal a possibilidade ou não de ser aplicada a lei ao caso concreto.
Após sua exposição sobre efeito principal e secundário, Liebman ressalta que a decisão que conclui pela constitucionalidade da lei não pode produzir nenhum efeito secundário, porque a lei mantém-se incólume no sistema jurídico, e não seria possível extrair dela efeitos secundários, ou seja, não se poderia afirmar que, com base na decisão declaratória de constitucionalidade, a lei deveria ser observada por todos os juízos. Tal impossibilidade decorre do obstáculo de ordem lógica, a saber, a lei que, justamente por ser lei, já é possuidora desses efeitos secundários.[17]
Com base na teoria de LIREBMAN – sendo, inclusive, o fundamento das diversas objeções hoje existentes em face da ação declaratória de constitucionalidade -, podemos alegar que, caso se admitisse o efeito secundário para as decisões que declaram a constitucionalidade da lei, estaríamos afirmando que esta somente seria aplicável quando sua constitucionalidade fosse declarada pelo Judiciário, o que é um equívoco inaceitável, já que a lei nasce, a partir de sua promulgação pelo Poder Legislativo, com a constitucionalidade presumida, competindo ao Judiciário realizar o controle de constitucionalidade apenas para corrigir eventuais erros cometidos. Aqui vale invocar o princípio da separação dos poderes.
Nesse prisma, a própria doutrina estrangeira repudia o efeito vinculante às decisões que declaram a constitucionalidade de uma lei, não podendo formar, igualmente, coisa julgada material. Para Paulo Otero, “as normas inconstitucionais nunca se consolidam na ordem jurídica, podendo a todo o momento ser destruídas judicialmente”.[18]
No mesmo sentido, Rui Medeiros afirma que “a declaração de constitucionalidade nem sequer tem de resto força de caso julgado inter partes: as decisões de não inconstitucionalidade apenas fazem caso julgado formal, não impedindo que o mesmo requerente volte a solicitar ao Tribunal a apreciação da constitucionalidade da norma anteriormente não declarada inconstitucional”.[19]
A ideia lançada por esse autor sintetiza o que queremos expressar com a afirmação deduzida já no início desse trabalho, no sentido de que o instituto da coisa julgada não deve ser aplicado às decisões da ADIN e ADC, sob pena de impedir a evolução interpretativa da Corte Constitucional e impossibilitar a fiscalização da decisão do STF por qualquer outro poder[20].
Sob esse pensamento, Georges Abboud destaca o fato de que permitir a formação de coisa julgada material em ADC acabaria por contrariar um fundamento elementar do direito constitucional, que consiste na possibilidade de fiscalizar a inconstitucionalidade dos atos normativos a qualquer tempo, porque a inconstitucionalidade não se convalida. E questiona: “Como seria possível, então, entender que ocorreria formação de coisa julgada material em ADC se a lei pode ter sua inconstitucionalidade suscitada a qualquer tempo?”.[21]
Para esse autor, “ainda que o Supremo declare a inconstitucionalidade da lei em abstrato, nada impede que, na prática, diante do caso concreto, a lei apresente-se inconstitucional, necessitando, assim, sofrer controle difuso de constitucionalidade, o que ficaria comprometido se a decisão da ADC formasse coisa julgada material e o consequente efeito vinculante”.[22]
Corroborando o raciocínio acima, CANOTILHO doutrina que as decisões que declaram a constitucionalidade não têm, “por conseguinte, efeito preclusivo, pois não impedem que o mesmo ou outro requerente venha de novo a solicitar ao TC a apreciação da constitucionalidade da norma anteriormente declarada inconstitucional”.[23]
No mesmo sentido, o Ministro Carlos Velloso, quando do julgamento da ADC 1-DF, sustentou em seu voto a impossibilidade de haver o impedimento da propositura da ação direta de inconstitucionalidade ainda que declarada a constitucionalidade da norma em sede de ADC.
Quem acompanha os trabalhos e as decisões da Suprema Corte norte-americana verifica que, algumas vezes, a Corte decide de uma forma, tempos depois de outra. O texto da Constituição foi mudado? Não. O que mudou foi a realidade, foi a constituição substancial. E a constituição formal, se não estiver ajustada à constituição substancial, não será, na linguagem de Karl Lowenstein, uma constituição normativa, mas simplesmente uma constituição nominal, que não será cumprida. Por isso, sustento que não deve haver impedimento na propositura da ação direta de inconstitucionalidade, mesmo julgada procedente a ação declaratória de constitucionalidade. Quer dizer, o ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade, tempos depois, não deve ser impedido.[24]
Concluímos, então, que a determinação mais acertada é a proibição de formação da coisa julgada na decisão que declara a constitucionalidade de uma lei em processo objetivo, já que, diante de sua ausência, o STF, havendo pedido específico para tanto, poderá rever suas decisões a fim de adequá-las à realidade daquele dado momento posterior, frente a eventuais alterações relevantes no âmbito social, econômico, político ou jurídico que possam modificar o próprio entendimento da Corte.
A não formação de coisa julgada material no controle abstrato de constitucionalidade deve prevalecer, mantendo incólume, no entanto, a decisão proferida pelo STF até eventual revisão de seu entendimento, vez que expressa a previsão constitucional da eficácia erga omnes e efeito vinculante, preservando, assim, a segurança jurídica e aplicação dos precedentes.
3. CONCLUSÃO.
Buscamos demonstrar todas as discussões existentes em torno da coisa julgada, eficácia erga omnes e efeito vinculante provenientes das decisões proferidas nas ações diretas do controle concentrado de constitucionalidade.
Fazemos questão de enfatizar que nos posicionamos a favor do entendimento no sentido de que os pronunciamentos que declaram a constitucionalidade da lei não devem possuir efeito vinculante, quiçá serem abarcados pela coisa julgada material, em que pese a previsão constitucional em sentido contrário.
Isso porque, tal efeito vincula os demais órgãos do Poder Judiciário, comprometendo a independência decisória dos juízes, bem como o direito fundamental de provocar o controle difuso de constitucionalidade, principalmente sendo evidente o fato de que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento em abstrato, não pode vislumbrar todas as situações fáticas que poderão ocorrer nos casos concretos.
Nas palavras de CASTANHEIRA NEVES, “a independência do Tribunal ou do juiz manifesta-se como garantia de que a sentença judicial pode valer como emanação do direito e não simplesmente como ato “decisionista” do Estado”.[25]
Em suma, o Supremo Tribunal Federal, ao declarar a constitucionalidade em abstrato de determinada lei, não pode prever todos os desdobramentos que ela adquirirá diante de diversos casos concretos, em que poderá verificar-se inconstitucional, rogando pelo exercício da função da jurisdição constitucional a fim de corrigir o erro que não se convalida.
Pensamento contrário seria o mesmo que afirmar a possibilidade de permanência no mundo jurídico de norma inconstitucional, ferindo a jurisdição constitucional como princípio basilar do Estado Democrático de Direito.
4. BIBLIOGRAGIA.
ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. RT, 2011.
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. Ed. Coimbra: Almedina, 2000.
CARNELUTTI, Francesco. Sistema del diritto processuale civile. Padova, 1936.
CASTANHEIRA NEVES, Antonio. O instituto dos assentos e a função jurídica dos supremos tribunais. Coimbra, 1983.
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São Paulo: RT, 2006.
DELLORE, Luiz. Estudos sobre a coisa julgada e controle de constitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 5. ed. São Paulo: RT, 2004.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
______. O despacho saneador e o julgamento do mérito. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v. 88, n. 767, 1999.
MARINONI, Luiz Guilherme. Eficácia vinculante: a ênfase à ratio decidendi e à força obrigatória dos precedentes. São Paulo: RT, ano 35, v. 184, p. 9-41, jun. 2010.
MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da Lei. Lisboa: Universidade Católica. Ed., 1999.
MENDES, Gilmar. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS, Ives Granda da Silva. Controle concentrado de constitucionalidade. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
OTERO, Paulo. Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional. Lisboa: Lex, 1993.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
THAMAY, R. A inexistência de coisa julgada no controle de constitucionalidade abstrato. 2014. 401 F. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2014.
NOTAS DE RODAPÉ
[1] ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 101.
[2] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 49.
[3]Art. 102.
(…)
- 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.
[4] DELLORE, Luiz. Estudos sobre a coisa julgada e controle de constitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 404.
[5] THAMAY, R. A inexistência de coisa julgada no controle de constitucionalidade abstrato. 2014. 401 F. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2014.
[6] MENDES, Gilmar. Direitos fundamentais…, cit., p. 596.
[7] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 184.
[8] LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 255.
[9] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 761.
[10]MARINONI, Luiz Guilherme. Eficácia vinculante: a ênfase à ratio decidendi e à força obrigatória dos precedentes. São Paulo: RT, ano 35, v. 184, p. 9-41, jun. 2010. p. 32.
[11] CPC. Art. 926. Os Tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
- 1° Na forma e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
- 2° Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
[12] MARINONI, Luiz Guilherme. Eficácia vinculante: a ênfase à ratio decidendi…, cit., p. 32.
[13] O autor Luiz Dellore defendeu seu posicionamento em livro publicado antes da promulgação da Lei 13.105/15, a qual trouxe a previsão da aplicação da reclamação para garantir a observação de decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade (art. 988, III, CPC). (Estudos sobre a coisa julgada e controle de constitucionalidade, cit., p. 435).
[14]MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS, Ives Granda da Silva. Controle concentrado de constitucionalidade. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 600.
[15]ABBOUD, Georges. obra cit., p. 161.
[16]ABBOUD, Georges. obra cit., p. 162.
[17]ABBOUD, Georges. obra cit., p. 161e 162.
[18] OTERO, Paulo. Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional. Lisboa: Lex, 1993. p. 68 e 143.
[19] MEDEIROS, Rui. A decisões de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei. Lisboa: Universidade Católica. Ed., 1999. § 36, p. 836.
[20] MEDEIROS, Rui. A decisões de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, cit.,. § 36, p. 836-837.
[21] ABBOUD, Georges. obra cit., p. 181.
[22] ABBOUD, Georges. obra cit., p. 182.
[23] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. Ed. Coimbra: Almedina, 2000. Tít. 6, Cap. 4, n. C. III, p. 993.
[24] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC 1-DF. Tribunal Pleno. Min. Moreira Alves. Julgado em 01/12/1993. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=884> Acesso em: 23 jun. 2014.
[25] CASTANHEIRA NEVES, Antonio. O instituto dos assentos e a função jurídica dos supremos tribunais. Coimbra, 1983, n. 2, p. 104.
LETICIA ARENAL
Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito – EPD. Professora convidada em cursos de Pós-Graduação (lato sensu). Membro do Centro de Estudos Avançados de Processo – CEAPRO. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro. Advogada.