Dra. Carolina Araújo de Andrade – Advogada da Salamone Advogados Associados
A partir da edição da Lei 9.514 de 20 de novembro de 1997, passou a ser possível, no Brasil, a utilização da alienação fiduciária de bens imóveis, para garantia de débitos civis.
A grande vantagem deste tipo de contratação é a agilidade na execução do bem. Além disso, “a fidúcia legal tem como traço característico o fato de decorrer de lei e não depender sua eficácia e segurança das qualidades subjetivas do fiduciário ou das incertezas da sua solvência” [1].
Assim, a alienação fiduciária de bem imóvel, quando comparada com a hipoteca ou com outras modalidades de garantia, sempre possuiu maior vigor na busca do crédito em caso de inadimplência, conferindo ao fiduciante maior segurança, diante da possibilidade de transferência da propriedade.
De acordo com os artigos 26 e 27 da Lei n. 9.514/1997, todo o procedimento se desenvolve perante o Cartório Imobiliário (Registro de Imóveis). Assim, será o agente notarial quem notificará o devedor, constituindo-o em mora e, persistindo a inadimplência pelo prazo de 15 (quinze) dias, consolidará a propriedade do bem em prol do credor.
Em seguida, o fiduciário está autorizado a promover o leilão público para alienação do bem, uma vez que já consolidada a propriedade em seu nome.
Até a edição da Lei n. 13.465/17, de 11 de julho de 2017, que alterou as regras da alienação fiduciária, não dispunha a Lei n. 9.514/1997 sobre a necessidade da intimação pessoal do devedor para os leilões. E assim talvez o fizesse pautada nos objetivos de sua própria criação, que foi o de conferir ao mercado financeiro um instrumento eficaz para a consolidação do crédito emprestado, nos casos de inadimplência.
Não obstante, a jurisprudência majoritária passou a adotar posicionamento diverso, que fugia dos parâmetros da referida lei, mas que agora foi objeto da recente alteração legislativa, o que parece ter ocorrido para pôr fim à discussão.
Esse posicionamento, inclusive pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”)[2], consistia na necessidade da intimação pessoal do devedor da data da realização do leilão extrajudicial, sob pena de nulidade do procedimento.
E, para justificar a necessidade da exigência da notificação pessoal do devedor, o STJ utilizou como base as regras contidas no Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966, que regulamenta a cédula hipotecária no Sistema Financeiro da Habitação. E assim o fazia amparado no artigo 39, inciso II, da Lei n. 9.514/1997, que preconiza que às operações de crédito compreendidas no Sistema de Financiamento Imobiliário aplicam-se as disposições dos artigos 29 a 41 do referido Decreto.
Assim, no entendimento do STJ, seria possível a aplicação do artigo 36 do Decreto, que exige o conhecimento prévio dos leilões do imóvel pelo devedor.
Contudo, para alguns estudiosos, não seria possível a aplicação das regras do Sistema Financeiro da Habitação ao Sistema Financeiro Imobiliário, de onde surgiria a impossibilidade da aplicação do Decreto-Lei nº 70/1966 à Lei de Alienação Fiduciária, para criar uma exigência tal como a notificação pessoal do devedor para os leilões.
A exemplo, é possível citar o posicionamento do Dr. Luiz Antônio Scavone Júnior[3], que já ponderou o seguinte:
“A toda evidência, os sistemas contemplados pela Lei n. 9.514/1997 e o Decreto-Lei n. 70/1966 não são compatíveis e as recentes decisões colocaram a alienação fiduciária na vala comum, com a mesma insegurança da garantia hipotecária.
Caberá ao STJ esclarecer e, quiçá, pacificar o tumultuado entendimento da matéria por força das suas próprias decisões, o que é de se lamentar tendo em vista que aquela Corte existe constitucionalmente, inclusive, para zelar pela correta interpretação da lei federal”.
Desse modo, a recente alteração legislativa, de fato, parece ter vindo para resolver a questão nesse aspecto, já que o artigo 26-A da Lei n. 13.465/2017[4] trouxe a possibilidade da aplicação das regras do Sistema Financeiro Habitacional, no que se refere aos procedimentos de cobrança, purgação da mora e consolidação da propriedade fiduciária, ao Sistema Financeiro Imobiliário, pelo menos no sentido literal, já que, na prática, é preciso verificar se, de fato, existe essa compatibilidade entre os sistemas.
Nesse particular, é válido lembrar que alienação fiduciária de bem imóvel ganhou espaço justamente com a perda da eficácia dos contratos firmados no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação, criados pela Lei n. 4.380/1964, e garantidos com a hipoteca.
Como bem explicam Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe[5], a crescente inflação e o consequente aumento do valor das prestações fez com que os mutuários ficassem inadimplentes, de modo que os credores precisaram valer-se do Poder Judiciário para recuperação do crédito ou do imóvel financiado.
Entretanto, as execuções judiciais não tiveram o sucesso esperado, tendo em vista que a garantia hipotecária não representava um instrumento tão eficaz nas busca do crédito, porquanto permitia, por exemplo, que, nas execuções concursais, outros créditos fossem privilegiados em desfavor do credor hipotecário.
Desse modo, a alienação fiduciária de bem imóvel veio justamente para dar mais efetividade para a recuperação do crédito, concedendo ao mercado financeiro uma segurança maior.
Contudo, como visto acima, a exigência da notificação para os leilões, agora disciplinada pela Lei n. 13.465/2017, com a introdução do § 2º-A no artigo 24, da Lei de Alienação Fiduciária[6], na visão de alguns juristas, causa insegurança jurídica e pode caracterizar até mesmo um retrocesso diante da gloriosa evolução legislativa nesse aspecto, que permitiu maior segurança ao credor, na busca do seu crédito.
Outrossim, conforme destacado acima, a alteração legislativa em comento parece ter vindo com a intenção de resolver a questão ou, pelo menos, diminuir as margens para discussões nesse sentido. Porém, o que não se sabe ainda é se a exigência da notificação para os leilões reduzirá a eficiência do procedimento da alienação fiduciária, o que, de fato, poderia ser visto como “um passo para trás”.
[1] COSTA, Valestan Milhomem da. A alienação fiduciária no financiamento imobiliário. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p.18
[2] AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE LEILÃO EXTRAJUDICIAL. LEI Nº 9.514/97. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE COISA IMÓVEL. NOTIFICAÇÃO PESSOAL DO DEVEDOR FIDUCIANTE. NECESSIDADE. PRECEDENTE ESPECÍFICO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. 1. “No âmbito do Decreto-Lei nº 70/66, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça há muito se encontra consolidada no sentido da necessidade de intimação pessoal do devedor acerca da data da realização do leilão extrajudicial, entendimento que se aplica aos contratos regidos pela Lei nº 9.514/97″ (REsp 1447687/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/08/2014, DJe 08/09/2014). 2. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (AgRg no REsp 1367704/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/08/2015, DJe 13/08/2015)
[3] SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio, Direito imobiliário Teoria e Prática. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017 – pg. 546.
[4] Art. 26-A. Os procedimentos de cobrança, purgação de mora e consolidação da propriedade fiduciária relativos às operações de financiamento habitacional, inclusive as operações do Programa Minha Casa, Minha Vida, instituído pela Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009, com recursos advindos da integralização de cotas no Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), sujeitam-se às normas especiais estabelecidas neste artigo.
[5] RESTIFFE NETO, Paulo; RESTIFFE, Paulo Sérgio. Propriedade Fiduciária Imóvel, São Paulo: Malheiros, p. 18/20
[6] Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para a alienação do imóvel.
- 1o Se no primeiro leilão público o maior lance oferecido for inferior ao valor do imóvel, estipulado na forma do inciso VI e do parágrafo único do art. 24 desta Lei, será realizado o segundo leilão nos quinze dias seguintes. (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)
- 2º No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.
- 2o-A. Para os fins do disposto nos §§ 1o e 2o deste artigo, as datas, horários e locais dos leilões serão comunicados ao devedor mediante correspondência dirigida aos endereços constantes do contrato, inclusive ao endereço eletrônico. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)